RIO - H? poucos meses, o m?sico e compositor Arnaldo Baptista, ex-l?der dos Mutantes, recebeu um telefonema curioso. A grife de moda Cavalera o convidava a estrelar uma campanha publicit?ria... nu. O ex-mutante recusou. N?o pela ideia - aos 62 anos, seria no m?nimo subversivo ficar pelado em outdoors pelo Brasil - mas pelo cach?.
- Eu valho mais do que a mo?a Galisteu, n?? - brinca Arnaldo, rebelde e um pouco desatualizado das beldades da vez.
Aquela era s? mais uma das muitas propostas que o roqueiro vem recebendo desde que teve sua hist?ria recuperada pelo document?rio "Loki", de 2009. O filme, de Paulo Henrique Fontenelle, conta a trajet?ria de Arnaldo, que teve uma carreira solo conturbada depois do fim dos Mutantes, nos anos 70, e vivia isolado com a mulher, Lucinha Barbosa, num s?tio em Minas Gerais, dedicando-se ? pintura e compondo novas can??es. O filme deixava um recado claro: Arnaldo n?o era s? um maluco beleza esquecido, com um passado de excessos. Ele ainda vivia e produzia (muita) arte.
FOTOS:Veja a trajet?ria do ex-Mutante
Com o sucesso da fita, que arrebatou 14 pr?mios, gente de toda parte come?ou a procur?-lo para shows e exposi??es de arte e at? para criar aplicativo de celular. Inspirado pelo ass?dio, Arnaldo trancou-se no est?dio de casa, comp?s novas can??es e volta com for?a total: est? finalizando o ?lbum "Esphera", a ser lan?ado at? outubro, depois de sete anos sem gravar nada. Entre os dias 12 e 15, ele participa da SP Arte, a mais importante feira de arte de S?o Paulo. Em seguida, seus quadros voam para a Argentina, para a ArteBA, feira de arte contempor?nea de Buenos Aires. No fim do ano, ter? sua primeira exposi??o individual, batizada de "Lentes magn?ticas", na galeria paulistana Emma Thomas.
No cronograma Arnaldo-2011, ainda est? previsto um espet?culo multim?dia, o "Na Esphera com Arnaldo". N?o ser? um show convencional: no palco, sem banda, ele tocar? piano, pintar? quadros e conversar? com o p?blico, numa esp?cie de concerto interativo.
- Fico feliz com tudo o que est? acontecendo. O Ringo Starr diz, numa m?sica: "They're gonna put me in the movies, they're gonna make a big star out of me: and all I gotta do is act naturally" (V?o me colocar nos filmes, v?o fazer de mim uma estrela, e tudo o que eu tenho que fazer ? agir naturalmente). ? o que vou fazer: agir naturalmente. Eu s? quero fazer por merecer tanto barulho. - cantarola Arnaldo, na sala do s?tio, transformada em ateli?.
Todas as novidades deste que promete ser o Ano Arnaldo (ou "ar-now-do", como ele arrisca) s?o pipocadas no seu Twitter e Facebook, para a alegria de milhares de seguidores, entre f?s antigos e novos. Apesar de ser um entusiasta da internet, no entanto, Arnaldo pouco mexe no computador. Ele escreve as frases num caderninho (s?o famosas as "Contente com o tente" e "Gosto n?o se diz. curte"), e a mulher, Lucinha, prontamente as publica.
Foi na internet que Arnaldo lan?ou, no ?ltimo m?s, a primeira m?sica do novo ?lbum, o single "I don't care", que fala do uso de fontes de energia alternativas. O m?sico tem se interessado cada vez mais por ecologia e sustentabilidade. Durante a entrevista, havia um panfleto sobre pain?is solares na mesa da sala - o casal pretende instalar um no s?tio. Apesar de vegetariano, no entanto, Arnaldo continua rock 'n' roll: em "Esphera", ele toca sozinho, e virtuosamente, todos os instrumentos. Um leg?timo "one man band".
- O disco se chama "Esphera", com ph, porque tem a ver com o mundo, com a espera, e com a esperan?a de um mundo melhor. Estou tentando colocar na m?sica minha maneira de pensar, uma "filosof?sica". ? um disco leve, mais feliz - comenta Arnaldo. - Tento construir o som como se eu estivesse num para?so: eu tenho a bateria do Ringo, o teclado do Elton John, o contrabaixo do Jack Bruce (da banda de rock Cream).
Produtor do ?lbum, o m?sico Fabiano Fonseca, de Belo Horizonte, j? tinha trabalhado com Arnaldo em grava??es anteriores, quando se tornaram tamb?m amigos. Fabiano diz que em "Esphera" o caldeir?o de sonoridades que sempre caracterizou o estilo Baptista ainda est? fervendo. S? que, desta vez, com g?s natural.
- O ?lbum ? uma retrospectiva desse universo particular. As can??es falam de profecias, dos seus contos fant?sticos, e uma simples not?cia de jornal ou um gato simp?tico viram inspira??o. Ainda faltam algumas viagens a Juiz de Fora, onde o ?lbum est? sendo gravado com os instrumentos de que ele tanto gosta. Gosto de dar "uma chance ao suficiente", como diz Arnaldo - diz Fabiano.
A capa do disco est? sendo pintada por Arnaldo: um c?rculo colorido simbolizando um mundo equilibrado. As telas s?o a outra "esfera particular" do artista.
- Depois que as pessoas viram no filme que o Arnaldo pintava, come?aram a pedir quadros para comprar, fazer exposi??es. ? o que voc? v?: ele pinta o dia todo, tem quadro at? no banheiro. Agora est? numa fase de colagens. N?o tenho mais um garfo na cozinha - brinca Lucinha, a fiel guardi? da obra de Arnaldo, mostrando uma tela com talheres e um prato de bateria sob o t?tulo "Em gula".
- Estou sempre em busca da beleza, a beleza ? o mais importante. ? dif?cil saber quando est? pronta uma pe?a. O que ser? que passou pela cabe?a de Da Vinci quando ele terminou a Mona Lisa? Ser? que pensou se era vend?vel? Ou s? pensou no sorriso da Gioconda? - provoca Arnaldo, ao falar da rela??o com a pintura.
Arnaldo desenhava desde crian?a, mas sempre preferiu tocar. Nascido em S?o Paulo, em 1948, filho de m?e pianista e pai poeta, aos 14 anos formou a banda The Thunders. Aos 18, levou o irm?o S?rgio Dias, que tocava guitarra, para a banda Six Sided Rockers, que tinha Rita Lee na forma??o. Dali, ele, Rita e S?rgio fundaram os Mutantes, banda que inaugurou a a hist?ria do rock brasileiro. Nela, Arnaldo, ent?o casado com Rita Lee, assumia o arranjo, os instrumentos e as composi??es, ? frente das experimenta??es que culminariam na Tropic?lia. No entanto, viu a carreira ruir entre os sucessos e excessos. Logo acabariam o casamento e a banda.
Cada vez mais isolado musicalmente, Arnaldo tentou reerguer-se como produtor musical, mas n?o deu certo. Tentou a carreira solo, mas o LSD j? cobrava a conta. Apesar das baixas expectativas, em 1974 lan?ou o ?lbum "Loki?", hoje listado em qualquer rol de dez-mais do rock nacional. Arnaldo casou-se novamente, desta vez com a atriz Regina Mellinger, e juntos tiveram um filho, Daniel. Foram dois anos de paz em fam?lia.
Anos depois, as interna??es psiqui?tricas ficaram frequentes e, em 1982, Arnaldo sofreu um acidente que deixou sequelas graves: caiu do quarto andar de um hospital em S?o Paulo. Ficou internado, em coma, por meses.
Foi Lucinha quem o resgatou da espiral de destrui??o. A ent?o f? ficava todos os dias com Arnaldo no hospital, e teve a ideia de comprar material de desenho durante o per?odo de interna??o. Os dois se casaram e foram morar no s?tio de Lucinha, em Juiz de Fora. L?, vivem quase escondidos, desde ent?o. A pintura e a m?sica foram fundamentais para seu processo de recupera??o.
Nos anos 90, Arnaldo reapareceu num elogio em rede nacional: em entrevista ? MTV, Kurt Cobain declarou seu amor ao mutante. Aos poucos, ele ia voltando: em 2000, participou de um show com Sean Lennon, outro f? com sobrenome estridente. Em 2004, lan?ou o ?lbum "Let it bed", que levou anos para concluir, e em 2006 ensaiou uma retomada com uma nova forma??o dos Mutantes, com Z?lia Duncan no lugar de Rita Lee. Mas Arnaldo n?o dava mais conta da rotina de voos e shows. Voltou para Juiz de Fora, onde se sentia muito mais ? vontade com suas telas e amplificadores valvulados. At? que veio o document?rio "Loki", contando para todo o mundo que ele ainda era genial.
Dona da galeria de arte contempor?nea Emma Thomas, em S?o Paulo (o trocadilho com "hematoma" ironiza as galeria com nomes compostos), Juliana Freire, de 33 anos, j? namorava as gravuras de Arnaldo que vira na casa de um amigo, contraparente de Lucinha. Quando assistiu ao filme, pirou. Hoje, ela ? sua galerista oficial. Uma gravura vale cerca de R$ 2 mil e um quadro j? foi vendido a um casal por R$ 6 mil.
- O trabalho dele se sustenta como obra, n?o ? preciso usar a refer?ncia dos Mutantes para apresent?-lo - defende Juliana. - Estamos levando 336 obras dele para a SP Arte, depois vamos direto para Buenos Aires. E j? preparamos a primeira individual, prevista para o fim do ano. Vai se chamar "Lentes magn?ticas", com um belo cat?logo.
As telas de Arnaldo tamb?m servir?o de cen?rio para o espet?culo multim?dia "Na Esphera com Arnaldo Baptista", dirigido pela artista pl?stica e cen?grafa Marta Oliveira, j? aprovado na Lei Rouanet e em fase de capta??o de patroc?nio (o custo total ? R$ 402 mil). Ser?o tr?s apresenta??es este ano, no Rio, em S?o Paulo e em Belo Horizonte.
- Ele vai tocar piano, pintar quadros e conversar com a plateia, numa esp?cie de chat ao vivo. Al?m de ser um g?nio musical, ele ? um exemplo de supera??o. Tem tanta gente jovem com a carreira repetitiva e ele a?, se reinventando sempre. - diz Marta. - Nessa fase de capta??o, me chama a aten??o o interesse dos empres?rios mais novos, como se tivessem descoberto o Arnaldo agora.
O entusiasmo dos jovens ? not?vel. Atrav?s deles, Arnaldo chegou tamb?m ? vanguarda da esfera virtual. O analista de sistemas Eduardo Rangel, 29 anos, escreveu ao m?sico com a proposta de fazer o primeiro aplicativo para iPhone e iPad sobre um artista brasileiro. Lucinha e Arnaldo toparam. O software - previsto para ser lan?ado juntamente com o CD "Esphera", at? outubro - ter? discografia, com letras, m?sicas, fotos e biografia ? disposi??o por apenas um clique. Se fosse encomendar o servi?o, Arnaldo desembolsaria cerca de R$ 40 mil.
- Eu sou f? do Arnaldo h? muito tempo, e tenho certeza de que ser? muito baixado. A minha ideia ? fazer aplicativos sobre artistas brasileiros, pois vejo que este suporte ainda ? desconhecido pelos m?sicos - ambiciona Eduardo.
Na parede, acima, os quadros mais recentes de Arnaldo (a escultura, ali?s, tamb?m ? dele); ao lado, uma das gravuras que estar?o na SPArte, de 12 a 15 deste m?s; abaixo, uma das telas do aplicativo para celular que ser? lan?ado junto com o CD "Esphera"
Ideia parecida teve o m?sico Felipe Gasnier, de 26 anos. Dono de uma loja virtual de produtos relacionados ? m?sica, a 7Polegadas - que representa Erasmo. Carlos, Ultraje a Rigor e Ratos de Por?o, por exemplo - o m?sico ouvia Mutantes desde os 16 anos. Depois de ver o filme, procurou o site de Arnaldo e viu que havia um >sav
- Ele ?, disparado, o l?der de vendas - anima-se Felipe, que oferece um "kit-Arnaldo", com camiseta, botton e caneca, por cerca R$ 50. - Como o Arnaldo ? muito presente no Twitter e no Facebook, chama muita aten??o para os produtos. Enquanto l? fora qualquer esquina tem uma lojinha com produtos dos Beatles, aqui ainda ? dif?cil achar uma camiseta do Roberto Carlos, por exemplo.
N?o para por a?: de Montes Claros, interior de Minas Gerais, o f? Samuel Reis prop?s uma reformula??o completa do site do ex-mutante, com um sistema de download por doa??o.
Diretor de "Loki", Paulo Henrique Fontenelle n?o sabia de todas as "sementes de imagina??o", para usar o vocabul?rio arnaldiano, que tinha plantado com o filme.
- Ele respira arte o tempo todo. Quando n?o conseguia tocar por causa do acidente , come?ou a pintar, depois a escrever (Arnaldo tem um livro publicado pela Editora Rocco, "Rebelde entre rebeldes") , e como j? est? tocando perfeitamente, era natural que viesse um novo ?lbum. Eu ouvi o single e liguei para ele na hora. Vou fazer o videoclipe de "I don't care" - antecipa Paulo Henrique, aumentando a lista de participa??es colaborativas.
Quem tamb?m traz novidades do planeta Arnaldo ? a cantora Z?lia Duncan. Em seu pr?ximo DVD, ela canta a m?sica "Borboleta", de Arnaldo, que gravou em parceria com Marcelo Jeneci e Alice Ruiz.
- Certa vez, pedi a ele uma m?sica para gravar, e quando ele tocou "Alma", dele com Pepeu Gomes, senti um calafrio. Foi um dos meus maiores sucessos - lembra a cantora. - Ele faz parte da tr?ade que me inspira, com Renato Russo e Cazuza. Arnaldo decidiu viver, e isso ? muito bonito de se ver. Fico feliz de fazer parte desse importante retorno.
O contato mais emocionado, no entanto, veio de um email de Israel, onde o filho de Arnaldo vive h? mais de dez anos. Reservado, Daniel, de 33 anos, n?o comenta a rela??o pessoal com o pai e preferiu n?o participar do document?rio. Mas no fim do ano passado escreveu ? Lucinha, disposto a editar v?deos mais modernos para divulgar o trabalho de Arnaldo no YouTube e no Facebook. Os filmetes j? est?o no ar, e o efeito psicod?lico das imagens denuncia o DNA.
- Gosto muito dos v?deos, acho interessante que ele faz isso de uma maneira po?tica - resume Arnaldo, claramente emocionado com a aproxima??o espont?nea.
Em poucas palavras, Daniel comenta, por email:
- Eu dei a ideia de ter um canal oficial no YouTube para divulgar o trabalho com um material mais original. Os v?deos que estou fazendo s?o todos caseiros mesmo, mas com meu toque especial. O que gosto de fazer ? pegar todas as pinturas que meu pai tem feito e uni-las com a m?sica nos v?deos, como uma fotomontagem. Queremos ter toda a obra do Arnaldo acess?vel para o f? curtir o dia todo rock puro e original.
O rock puro e original, segundo o cr?tico musical Tarik de Souza, estar? latejando em "Esphera":
- Desde o disco "Loki?", de 1974, Arnaldo passou a transmitir suas ideias e sons a partir de um universo pr?prio, absolutamente original. Nele se combinam inven??o e cria??o pura, lapidada por seu desligamento do cotidiano trivial. O t?tulo ? autoexplicativo: Arnaldo habita hoje outra esfera pessoal e est?tica. ? fundamental que existam vozes dissonantes como a dele na MPB.
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